“Sabedoria...
seria anoitecer como um bêbado e amanhecer como um abstêmio.”
Paulo Mendes
Campos
A ideia desse texto surgiu por ocasião de um papo
descontraído na retomada das atividades do Núcleo de psicanálise e toxicomania,
na CLIPP, no primeiro encontro de sábado com os participantes.
Começávamos 2014 a todo vapor: o texto de Elvia
Bezerra, coordenadora de literatura do Instituto Moreira Salles – “Lições de
Boemia” (O álcool e os bares nos cadernos de Paulo Mendes Campos) -, publicado
na revista Piauí 88 (jan.14), nos
trazia de volta ao cenário de nossas discussões em 2013.
Quando Paulo Mendes Campos perguntou-se, em 1962, aos
40 anos, “Por que bebemos tanto assim?”, ele já tinha a resposta: “Bebemos para
empatar com o mundo. O mundo está sempre a ganhar da gente, de 1 a 0, de 2 a
0... bebe-se na esperança de igualar o marcador.” Já nessa época, nos diz
Bezerra, “ele tinha um percurso respeitável pelas mesas do planeta.” Seu lado
boêmio nunca foi obstáculo à disciplina extraordinária que se revelou em sua
produção jornalística para vários periódicos cariocas da década de 40, nas
inúmeras crônicas, na poesia e nos trabalhos de tradução - muitos dos quais
dedicados ao tema do alcoolismo -, e nos 55 cadernos de anotações e incontáveis
documentos sob a guarda do IMS, desde 2011.
Se Paulo Mendes Campos, em seu percurso, encontrou
resposta tão redonda para “Por que bebemos...”, o que pode nos oferecer a psicanálise
com relação ao alcoolismo como busca de saída para o sofrimento subjetivo?
Nosso objetivo é fazer uma construção, tomando como
viés a orientação lacaniana, numa tentativa de responder a essa questão.
No texto/aula do semestre passado, enfatizamos a
intuição clínica de Freud que marcava a semelhança entre a relação do bêbado
com sua garrafa e um casamento feliz. O
que nos intriga é a questão por trás da escolha de alguém que devota sua vida à
embriaguez.
Como ponto de partida para realizar nossa construção,
ressaltemos um trecho da entrevista de J.-A. Miller concedida a vários
analistas participantes do Seminário da Seção Clínica de Barcelona-1996,
intitulada “Lacan com Joyce” e publicada na Correio
65. Miller, ao dizer que o sujeito se submeteu à aprendizagem de uma língua
nos explica “que o verdadeiro núcleo traumático não é a sedução, a ameaça de
castração, a observação do coito; tampouco a transformação de tudo isso em
fantasia, não é Édipo e castração. O verdadeiro núcleo traumático é a relação
com a língua”, língua e regras gramaticais a que cada um se submete (Miller:p.41).
Mais adiante, Miller nos fala que “o desejo do Outro, o desejo dos pais, o dos
outros...[...], se transmite, se veicula, se impõe, se imprime pela ‘lalíngua
de família’.”(ibid.p.42)
Para Lacan, o ser só passa a ter um corpo via
submissão à linguagem: a linguagem tanto desorganiza o gozo do corpo, tornando-o
doente, como ao mesmo tempo é a responsável por sua cura, através da redução de
seu gozo, de seu enlaçamento, e da oferta de suplência. (ibid.p.56) O sujeito
encontra-se aparelhado pela linguagem – ela é um aparelho de gozo -, porém, desconectado
de seu corpo natural. Então, pode-se
dizer, seguindo a construção milleriana, que “o trauma é aquele da incidência
da linguagem sobre o ser falante.”
Dito isto, podemos pensar o alcoolismo, a embriaguez
alcoólica, como um dos sinais do trauma no corpo: um mistério reeditado a cada
vez que um ser nasce para a vida através da linguagem. Como é que um corpo assim traumatizado vai
responder às exigências do Outro? Por onde passa tudo isso?
Já sabemos de outras conversas com Durval Mazzei,
coordenador do Núcleo, que a droga funciona como um passaporte identificatório; funciona como um anteparo, um preventivo ao
mal-estar gerado pelo Outro, ajudando o
sujeito a lidar com o insuportável da civilização, a atenuar a dor da própria
existência; desempenha papel de suavizador da pressão exercida pelo agente
paterno; estimula a infidelidade do
sujeito à acomodação ao seu próprio gozo fálico – estamos falando aqui do divórcio do falo -, tema de nossa aula
de agosto, cujo texto encontra-se postado no blog do Núcleo.
Embora sujeito à ordem fálica, cujo
papel é ordenar a função do desejo, tanto o usuário de droga quanto o
alcoolista, contestam a ordem fálica, distanciam-se dela, pagando por esse
distanciamento com o declínio do próprio corpo.
Bernard Lecoeur, em seu livro O homem embriagado, indaga que estatuto tem a embriaguez para a psicanálise. É
um gozo, pergunta Lecouer? Tem a ver com as condições da relação de amor que o
sujeito desenvolveu ao se constituir? Sim,
sem sombra de dúvida!
Importante enfatizar que, além de ter dificuldades
para lidar com sua divisão subjetiva, o neurótico enfrenta problemas para
encontrar satisfação plena em suas parcerias: entre a mulher que se autoriza a
amar e a mulher que seu desejo pode ou não alcançar. Tendo o álcool como
recurso para gozar além do gozo fálico, para garantir um mais-de-gozar, o sujeito
trata de obturar as falhas que marcam sua existência, inclusive os impasses do
sexo – o álcool vem acompanhado da promessa de oferta do “gozo solicitado,
fabricado, monótono, sem adiamento – o gozo do Mesmo.” (Lecoeur:p.23)
Ao entregar-se a essa operação, o
sujeito tem em mente a possibilidade de restabelecer seu corpo pleno de gozo, perdido
pela incidência da linguagem, evitando, assim, a função separadora da linguagem.
Bastante difícil para o sujeito se assumir como consequência do cruzamento da
linguagem com o desejo do Outro (Lecoeur:p.42).
“O que pode o corpo?”, pergunta
levantada por Spinoza, o que pode um corpo traumatizado, acrescento agora, pelo
tsunami da linguagem devastadora do mais puro gozo em que se encontrava o
sujeito?
Fruto
de uma “insondável decisão” subjetiva, cada um se reinventa de acordo com as
possibilidades da estrutura determinante de seu sintoma, de seu funcionamento
ao longo da vida. Será que podemos nos autorizar a pensar no mais íntimo da
singularidade de um grupo de pessoas famosas, como Paulo Mendes Campos, Edgard
Allan Poe, Fernando Pessoa, Oscar Wilde, Vinicius de Morais e tantos outros
mais, pelo viés da psicanálise e tentar nos aproximar da forma como eles se
enodaram e se mantiveram norteados pelo desejo em suas vidas?
Podemos concordar com Manoel de Barros,
- “a maior riqueza do homem é a sua incompletude” -, e perceber que foi
exatamente a incompletude em cada um desses homens, principalmente em Paulo
Mendes Campos - nosso enfoque de hoje -, que os direcionou à crença de que
sempre poderiam contar com a companhia de um bom copo de vinho para navegar,
para lidar com a maneira, mais, ou menos traumatizante, que se deixaram marcar.
A veia artística singular de cada um
desses sujeitos não foi suficiente para dar conta da existência. Houve uma
segunda escolha, a escolha de um mais-de-gozar, generalizado para o grupo – o uso
do álcool -, poderíamos dizer, mas com efeitos singulares e subjetivos para
cada um. Desse mais-de-gozar, optaram por não se desvencilhar, tornando-o
companheiro fiel.
Claudia Aldigueri
Rodriguez
15/02/14
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