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08/03/2014

II Encontro do Núcleo de pesquisa-psicanálise e toxicomania - 15/02/14



“Sabedoria... seria anoitecer como um bêbado e amanhecer como um abstêmio.”
Paulo Mendes Campos


A ideia desse texto surgiu por ocasião de um papo descontraído na retomada das atividades do Núcleo de psicanálise e toxicomania, na CLIPP, no primeiro encontro de sábado com os participantes.
Começávamos 2014 a todo vapor: o texto de Elvia Bezerra, coordenadora de literatura do Instituto Moreira Salles – “Lições de Boemia” (O álcool e os bares nos cadernos de Paulo Mendes Campos) -, publicado na revista Piauí 88 (jan.14), nos trazia de volta ao cenário de nossas discussões em 2013.
Quando Paulo Mendes Campos perguntou-se, em 1962, aos 40 anos, “Por que bebemos tanto assim?”, ele já tinha a resposta: “Bebemos para empatar com o mundo. O mundo está sempre a ganhar da gente, de 1 a 0, de 2 a 0... bebe-se na esperança de igualar o marcador.” Já nessa época, nos diz Bezerra, “ele tinha um percurso respeitável pelas mesas do planeta.” Seu lado boêmio nunca foi obstáculo à disciplina extraordinária que se revelou em sua produção jornalística para vários periódicos cariocas da década de 40, nas inúmeras crônicas, na poesia e nos trabalhos de tradução - muitos dos quais dedicados ao tema do alcoolismo -, e nos 55 cadernos de anotações e incontáveis documentos sob a guarda do IMS, desde 2011.
Se Paulo Mendes Campos, em seu percurso, encontrou resposta tão redonda para “Por que bebemos...”, o que pode nos oferecer a psicanálise com relação ao alcoolismo como busca de saída para o sofrimento subjetivo?
Nosso objetivo é fazer uma construção, tomando como viés a orientação lacaniana, numa tentativa de responder a essa questão.
No texto/aula do semestre passado, enfatizamos a intuição clínica de Freud que marcava a semelhança entre a relação do bêbado com sua garrafa e um casamento feliz. O que nos intriga é a questão por trás da escolha de alguém que devota sua vida à embriaguez.
Como ponto de partida para realizar nossa construção, ressaltemos um trecho da entrevista de J.-A. Miller concedida a vários analistas participantes do Seminário da Seção Clínica de Barcelona-1996, intitulada “Lacan com Joyce” e publicada na Correio 65. Miller, ao dizer que o sujeito se submeteu à aprendizagem de uma língua nos explica “que o verdadeiro núcleo traumático não é a sedução, a ameaça de castração, a observação do coito; tampouco a transformação de tudo isso em fantasia, não é Édipo e castração. O verdadeiro núcleo traumático é a relação com a língua”, língua e regras gramaticais a que cada um se submete (Miller:p.41). Mais adiante, Miller nos fala que “o desejo do Outro, o desejo dos pais, o dos outros...[...], se transmite, se veicula, se impõe, se imprime pela ‘lalíngua de família’.”(ibid.p.42)
Para Lacan, o ser só passa a ter um corpo via submissão à linguagem: a linguagem tanto desorganiza o gozo do corpo, tornando-o doente, como ao mesmo tempo é a responsável por sua cura, através da redução de seu gozo, de seu enlaçamento, e da oferta de suplência. (ibid.p.56) O sujeito encontra-se aparelhado pela linguagem – ela é um aparelho de gozo -, porém, desconectado de seu corpo natural.  Então, pode-se dizer, seguindo a construção milleriana, que “o trauma é aquele da incidência da linguagem sobre o ser falante.”
Dito isto, podemos pensar o alcoolismo, a embriaguez alcoólica, como um dos sinais do trauma no corpo: um mistério reeditado a cada vez que um ser nasce para a vida através da linguagem.  Como é que um corpo assim traumatizado vai responder às exigências do Outro? Por onde passa tudo isso?
Já sabemos de outras conversas com Durval Mazzei, coordenador do Núcleo, que a droga funciona como um passaporte identificatório;  funciona como um anteparo, um preventivo ao mal-estar gerado pelo Outro,  ajudando o sujeito a lidar com o insuportável da civilização, a atenuar a dor da própria existência; desempenha papel de suavizador da pressão exercida pelo agente paterno; estimula  a infidelidade do sujeito à acomodação ao seu próprio gozo fálico – estamos falando aqui do divórcio do falo -, tema de nossa aula de agosto, cujo texto encontra-se postado no blog do Núcleo.  
Embora sujeito à ordem fálica, cujo papel é ordenar a função do desejo, tanto o usuário de droga quanto o alcoolista, contestam a ordem fálica, distanciam-se dela, pagando por esse distanciamento com o declínio do próprio corpo.
Bernard Lecoeur, em seu livro O homem embriagado, indaga que  estatuto tem a embriaguez para a psicanálise. É um gozo, pergunta Lecouer? Tem a ver com as condições da relação de amor que o sujeito desenvolveu ao se constituir?  Sim, sem sombra de dúvida!
Importante enfatizar que, além de ter dificuldades para lidar com sua divisão subjetiva, o neurótico enfrenta problemas para encontrar satisfação plena em suas parcerias: entre a mulher que se autoriza a amar e a mulher que seu desejo pode ou não alcançar. Tendo o álcool como recurso para gozar além do gozo fálico, para garantir um mais-de-gozar, o sujeito trata de obturar as falhas que marcam sua existência, inclusive os impasses do sexo – o álcool vem acompanhado da promessa de oferta do “gozo solicitado, fabricado, monótono, sem adiamento – o gozo do Mesmo.” (Lecoeur:p.23)
Ao entregar-se a essa operação, o sujeito tem em mente a possibilidade de restabelecer seu corpo pleno de gozo, perdido pela incidência da linguagem, evitando, assim, a função separadora da linguagem. Bastante difícil para o sujeito se assumir como consequência do cruzamento da linguagem com o desejo do Outro (Lecoeur:p.42).
“O que pode o corpo?”, pergunta levantada por Spinoza, o que pode um corpo traumatizado, acrescento agora, pelo tsunami da linguagem devastadora do mais puro gozo em que se encontrava o sujeito?
 Fruto de uma “insondável decisão” subjetiva, cada um se reinventa de acordo com as possibilidades da estrutura determinante de seu sintoma, de seu funcionamento ao longo da vida. Será que podemos nos autorizar a pensar no mais íntimo da singularidade de um grupo de pessoas famosas, como Paulo Mendes Campos, Edgard Allan Poe, Fernando Pessoa, Oscar Wilde, Vinicius de Morais e tantos outros mais, pelo viés da psicanálise e tentar nos aproximar da forma como eles se enodaram e se mantiveram norteados pelo desejo em suas vidas?
Podemos concordar com Manoel de Barros, - “a maior riqueza do homem é a sua incompletude” -, e perceber que foi exatamente a incompletude em cada um desses homens, principalmente em Paulo Mendes Campos - nosso enfoque de hoje -, que os direcionou à crença de que sempre poderiam contar com a companhia de um bom copo de vinho para navegar, para lidar com a maneira, mais, ou menos traumatizante, que  se deixaram marcar.
A veia artística singular de cada um desses sujeitos não foi suficiente para dar conta da existência. Houve uma segunda escolha, a escolha de um mais-de-gozar, generalizado para o grupo – o uso do álcool -, poderíamos dizer, mas com efeitos singulares e subjetivos para cada um. Desse mais-de-gozar, optaram por não se desvencilhar, tornando-o companheiro fiel.

Claudia Aldigueri Rodriguez                                                 

15/02/14

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